A nova cepa de coronavírus ‘P1’ está sendo apelidada de ‘variante amazonense’. Saiba porquê a segunda opção é errada e reforça preconceitos
Manaus – Na edição da última terça-feira (26), o apresentador William Bonner iniciou a escalada do Jornal Nacional (Rede Globo) com a informação de três casos confirmados da “variante amazonense do coronavírus”, em São Paulo (SP). Logo após utilizar o termo, o jornalista foi criticado nas redes sociais, por dar a entender que a nova cepa do patógeno havia surgido no Amazonas, quando ainda não há essa comprovação por parte dos cientistas.
“Não sei o que é pior, se [é] o JN tratar como variante amazonense ou o ex min. [da Saúde] Mandetta falar que pode ter uma mega epidemia [causada pela nova cepa]. É preciso que acabe esse preconceito com o norte. O vírus não é do Amazonas, não seja irresponsável em acusar, já sofremos preconceitos demais para mais esse”, escreveu Jalil Fraxe, diretor-presidente do Procon Amazonas, em uma rede social, na quinta (28).
Veja o momento em que a expressão foi dita por Bonner:
Com o nome ‘P1’, a variante encontrada no Amazonas foi identificada por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Laboratório Central de Saúde Pública do Amazonas (Lacen). A mudança do vírus não é uma surpresa, já que o patógeno tem poder de se transformar com o tempo.
O poder das palavras
É comum na língua portuguesa uma palavra adquirir outro significado a depender de muitos fatores, como o tom em que é dita ou pelo contexto. Para Sérgio Freire, doutor em Linguística, esse é o perigo de se utilizar a expressão ‘variante amazonense’.
“[Se referir à nova cepa desta forma] pode gerar um estigma social. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o estigma social na saúde como a associação pejorativa entre uma doença específica e uma pessoa ou um grupo de pessoas que compartilham certas características, podendo fomentar estereótipos, diversas formas de discriminação, xenofobia, afetando tanto a pessoas doentes ou infectadas como seus cuidadores, familiares, amigos e comunidades”, explica o especialista.
As consequências de se criar estigmas sociais são danosas, segundo Freire.
“[Isso] pode levar as pessoas a esconderem a doença para evitar discriminação, pode impedir que procurem atendimento médico imediatamente e até desencorajá-las de adotar comportamentos saudáveis”, afirma o doutor em Linguística.
Além de trabalhar com a linguagem, Freire também é psicólogo, por isso acende um alerta para os possíveis danos mentais a quem é associado a ideias consideradas negativas, como doenças.
“A partir do momento que se cola uma doença, uma ideia, um sentido a um povo, a um grupo ou uma etnia, a tendência natural é a negação dessa colagem, dessa associação. Isso pode ter impacto na própria identidade do grupo e no próprio espaço de aceitação social pelos outros falantes de outras partes do país. A história mostra o que acontece com preconceitos que têm se perpetuado em relação aos nordestinos, por exemplo, ou em relação à associação de criminalidade às pessoas negras. Precisamos, nós todos que trabalhos com a linguagem, ter muito cuidado com o que fazemos com ela, com o que ajudamos a estabelecer como verdade pelo poder de legitimação que exercemos”, orienta o profissional.
Estigmas sociais ao longo da história
Exemplos não faltam quando o assunto é doenças que foram e ainda são associadas a determinados grupos sociais. Durante a pandemia de HIV, nos anos 80, parte da mídia brasileira se referia ao vírus como ‘peste-gay.’ A expressão sumiu com o tempo, mas os danos seguem até hoje, quando ainda há quem acredite que a doença atinge apenas pessoas da comunidade LGBTQ+.
“Outro caso foi o da Influenza, que ficou conhecida na Primeira Guerra Mundial como ‘gripe espanhola’. Por causa da expressão, pensava-se que a doença atingia apenas a Espanha, o que depois se mostrou uma inverdade”, comenta a médica infectologista Maria Paula Mourão.
O exemplo citado pela especialista mostra ainda outro risco de se associar doenças a locais específicos. A crença de que a enfermidade atinge apenas aquela região.
“Na ciência, a gente evita dizer que uma doença é de ‘tal’ região, porque sabemos ser questão de tempo para que ela se espalhe para outros lugares. Hoje todo mundo comenta sobre a variante P1, encontrada no Amazonas, mas ela já está presente em oito países”, afirma a médica.
A forma correta de se referir à nova cepa
Além da expressão ‘variante amazonense’, termos como ‘P1 Amazonas” também podem reforçar estigmas sociais. Para evitar essas opções consideradas inadequadas, você pode utilizar ‘variante P1’, que é a forma adotada pela ciência. Se quiser se referir ao AM, pode dizer ainda ‘variante P1, com o primeiro caso registrado no Amazonas’.
“Assim como há práticas consolidadas pela imprensa no tratamento da notícia de suicídio, por exemplo, é preciso que o jornalismo encontre a boa prática informativa sem ajudar a ampliar os estigmas enquanto informa”, comenta o doutor em Linguística, sobre os casos de jornalistas que utilizaram o termo incorreto.
Meios de prevenção não mudaram
Apesar das inúmeras variantes encontradas ao redor do mundo, a médica infectologista ressalta a importância dos meios de prevenção conhecidos contra o coronavírus.
“A despeito das novas linhagens, nenhuma delas tornou o vírus mais resistente ao uso das máscaras, medidas de higiene ou distanciamento social. Então essas são as medidas que precisamos nos concentrar nesse momento para que possamos diminuir a mutação de novas variantes, para avançarmos com o plano de imunização”, afirma a especialista.
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