Nos últimos meses, a “maconha sintética” — também conhecida como K2, K9 ou spice, entre outros nomes — virou uma grande preocupação nacional com o aumento das apreensões pela polícia e do número de usuários em grandes centros urbanos.
Conhecidas pela ciência há pelo menos três décadas, essas substâncias foram inicialmente desenvolvidas e estudadas como tratamentos para várias doenças, como dores crônicas.
Com o tempo, esses produtos foram parar no mercado ilegal e hoje são vendidos por traficantes como um entorpecente bastante potente — e com efeitos que podem ser imprevisíveis.
Mas, afinal, qual o mecanismo de ação das drogas K? A BBC News Brasil ouviu especialistas para entender o “caminho” que essas substâncias fazem pelo corpo e como isso está relacionado a todas as manifestações e efeitos colaterais possíveis desse consumo.
A origem das drogas K
O toxicologista Maurício Yonamine, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), explica que os canabinoides sintéticos são um grupo de novas drogas que tem conquistado um espaço importante no mercado ilícito mundial.
“Para ter ideia, até hoje foram identificados mais de 300 canabinoides sintéticos diferentes por polícias do mundo inteiro”, calcula.
Como explicado anteriormente, a ideia inicial dos cientistas era sintetizar, ou reproduzir quimicamente em laboratório, a fórmula dos principais componentes da Cannabis sativa, a maconha. Um dos principais alvos nessa busca por novos tratamentos era o Tetrahidrocanabinol, conhecido pela sigla THC.
O objetivo dessas pesquisas científicas era minimizar ou extinguir os efeitos psicotrópicos dessas moléculas, preservando as possíveis aplicações terapêuticas delas.
Os canabinoides sintéticos foram então construídos em laboratório para imitar uma estrutura química parecida com a do THC — com pequenos ajustes nas cadeias de carbono, oxigênio, hidrogênio e assim por diante.
Todos esses trabalhos foram fundamentados em estudos realizados a partir dos anos 1960, que descobriram os sistemas endocanabinoides do nosso corpo.
Em resumo, as células que compõem o sistema nervoso no cérebro, na medula e nos nervos periféricos possuem receptores específicos, onde se encaixam algumas moléculas.
Esse mecanismo se assemelha mais ou menos ao de uma porta: os receptores são as fechaduras e as moléculas são as chaves.
O encontro dessas duas coisas — chave e fechadura; moléculas e receptores — representa o gatilho para uma série de reações que virão na sequência.
“E nós temos três possíveis componentes que interagem com esses receptores das células do sistema nervoso”, conta o psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Os primeiros deles são os endocanabinoides, neurotransmissores produzidos pelo próprio organismo, como é o caso da anandamida.
“Os segundos são os fitocanabinoides, provenientes da maconha. E os terceiros são os canabinoides sintéticos, feitos em laboratório”, complementa o médico, que pesquisa dependência química há 40 anos.
E esse encontro entre moléculas e receptores pode ter as mais variadas consequências. No caso dos endocanabinoides, fabricados pelo próprio corpo, esse processo é fundamental para regular o humor e o comportamento emocional, entre várias outras coisas.
Já a Cannabis, segundo Xavier, provoca “modificações de percepção e nas sensações subjetivas de relaxamento”.
“Os resultados vão depender da pessoa e do subtipo de maconha utilizada, mas alguns dos efeitos são mais ou menos ansiedade, sensação de tranquilidade, lentificação do pensamento e um certo empobrecimento da resposta aos estímulos ambientais”, lista.
“Alguns usuários também podem experimentar dificuldade de concentração e ideias paranoicas ou persecutórias”, complementa.
Já nos canabinoides sintéticos, esses efeitos são muito mais intensos e imprevisíveis. Isso porque eles têm uma potência maior, como você vai entender nos próximos parágrafos.
“Usuários das drogas K podem sentir um grande prazer e relaxamento, mas que depois geralmente é seguido por confusão mental, aumento da ansiedade, taquicardia, falta de coordenação motora, psicose e convulsões”, detalha Yonamine.
“Existem casos, inclusive, que o desfecho é fatal”, acrescenta o toxicologista.
A grande dificuldade aqui está na diversidade de tipos de canabinoides sintéticos: como se trata de um mercado sem regulação alguma e há uma facilidade em manipular as fórmulas químicas em laboratórios, a simples modificação da substância pode gerar um entorpecente novo com efeitos graves ou desconhecidos.
Do pulmão à cabeça
Os canabinoides sintéticos são comercializados de várias formas. Após o preparo do entorpecente em laboratório, esse líquido geralmente é pulverizado em qualquer tipo de erva seca, como o capim comum, ou em pedaços de papel.
Alguns produtores acrescentam ervas aromatizadas e incensos no produto final, que é embalado em sachês antes de chegar ao consumidor com os nomes comerciais de K2, K9, spice…
“Os usuários colocam essa mistura em cachimbos ou cigarros para conseguir fumar”, detalha Yonamine.
Há versões usadas especificamente em cigarros eletrônicos.
A droga é tragada pela boca e chega aos pulmões, onde é absorvida e cai na corrente sanguínea. “Daí ela é transportada rapidamente para o cérebro do indivíduo, onde vai causar os efeitos”, pontua o toxicologista.
Você já deve ter ouvido falar que as drogas K são “100 vezes mais potentes que a maconha”. Mas o que isso significa na prática?
“Os canabinoides sintéticos produzem um fenômeno químico que a gente chama de agonista total do receptor. Falamos aqui de moléculas que ocupam o receptor das células de forma maciça e brutal”, caracteriza Xavier.
Ou seja: a ligação entre as drogas K e os receptores endocanabinoides das células nervosas é muito mais forte e intenso em comparação com o que ocorre com os neurotransmissores naturais do corpo ou com a maconha.
Em termos químicos, os cientistas calculam essa força através de um conceito chamado de “afinidade de ligação”. Eles medem o quanto uma molécula “se gruda” a um receptor — quanto mais forte é essa conexão, menor é o número obtido nessa fórmula.
Segundo o Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Adição, a afinidade de ligação do THC (um dos compostos da maconha) aos receptores das células nervosas é de 10,2 nM (nanomolares).
Já no HU-210, um dos canabinoides sintéticos que integram o grupo das drogas K, esse número fica em 0,06 nM.
Isso, na prática, significa que ele se encaixa aos receptores nervosos de uma forma 100 vezes mais intensa quando comparado à maconha.
“E essa ligação vai levar àquela série de efeitos descritos pela mídia, em que a pessoa fica num profundo estado alterado de consciência e perde a noção de si mesma”, complementa Xavier.
Segundo o psiquiatra, a diferença entre os efeitos da maconha e das drogas K, guardadas as devidas proporções, é a mesma entre tomar um copo de cerveja ou meio litro de absinto. “Mesmo que a substância seja similar, o efeito dela no organismo pode ser diferente e gerar comportamentos completamente disruptivos.”
Xavier, que trabalhou alguns anos em serviços de atendimento de emergência, diz que o uso das drogas K deve levar a um aumento nos casos de adolescentes e adultos jovens vítimas de infarto, por conta das alterações no corpo que causam taquicardia (aceleração das batidas do coração) e outros eventos adversos.
Os ataques cardíacos costumam ocorrer com mais frequência a partir dos 50 anos e estão tradicionalmente relacionados ao estilo de vida e às doenças crônicas, como colesterol alto, obesidade, diabetes e hipertensão.
Yonamine, por fim, pontua que todos esses efeitos dos canabinoides sintéticos podem durar de uma a seis horas, a depender de cada formulação.
Como resolver esse problema?
Xavier observa que, ao longo da história, a intensificação do proibicionismo de algumas drogas tem como efeito colateral o surgimento de formas mais perigosas de consumo de entorpecentes.
“No final do século 19, as farmacêuticas desenvolveram em laboratório uma droga que acabaria com o problema do ópio: a morfina”, destaca.
“Dez anos depois, a morfina havia se tornado uma questão de saúde ainda mais grave. Daí os laboratórios criaram uma solução para a dependência da morfina: a heroína, que hoje ainda representa um grande problema em partes do Hemisfério Norte.”
O médico cita outro exemplo: a Lei Seca dos Estados Unidos, que proibiu a venda de bebidas alcoólicas no início do século 20.
“Esse foi o único momento da história da humanidade em que foram registrados casos de pessoas que injetaram álcool na veia”, observa ele.
“Isso acontecia porque, se você tem uma compulsão para o uso de álcool e havia uma proibição, tentava-se tirar o máximo proveito de qualquer quantidade disponível.”
Por fim, o psiquiatra aponta que o grande boom do crack esteve relacionado à proibição da cocaína em anos mais recentes.
“E a história se repete agora com os canabinoides sintéticos: o proibicionismo relacionado à maconha fez surgir uma forma de consumo mais perigosa e com alto risco de letalidade.”
Na visão de Xavier, o caminho para lidar com o abuso e a dependência química não envolve a proibição. “É preciso trabalhar com os subgrupos de maior vulnerabilidade, como os adolescentes, e pensar em ações voltadas para eles”, sugere.
“Mas não adianta partir para um discurso mentiroso, no estilo ‘maconha pode matar’. Os jovens não vão ouvir.”
“A boa comunicação sobre as drogas envolve o respeito à inteligência das pessoas, conversando abertamente com elas e falando sempre a verdade”, conclui o pesquisador.
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