O governo dos EUA pretende associar o uso de paracetamol em mulheres grávidas ao autismo — mas é seguro usar o medicamento?
A imprensa americana noticiou que o governo dos Estados Unidos deve fazer um anúncio nesta segunda-feira (22/9) no qual afirmará que existe uma relação entre o uso de paracetamol em mulheres grávidas e autismo em crianças — contrariando diretrizes médicas vigentes.
Na sexta-feira (19/9), o presidente americano, Donald Trump, havia dito que tinha um anúncio “incrível” para fazer sobre autismo, dizendo a repórteres: “O autismo está totalmente fora de controle… Acho que talvez tenhamos um motivo para isso.”
Alguns estudos mostraram que existe uma pequena ligação entre mulheres grávidas que tomam paracetamol — que nos EUA é vendido com o nome Tylenol — e o autismo, mas essas pesquisas não são consistentes e não provam que o medicamento causa autismo.
O que é Tylenol ou paracetamol?
Tylenol é um analgésico de venda livre cujo ingrediente ativo é conhecido como acetaminofeno nos EUA.
No Brasil e em diversos outros países, a substância é conhecida como paracetamol.
Vendido sob diversas marcas e com versões especiais para bebês e crianças pequenas, tornou-se um produto básico em todo o mundo para tratar dor e febre.
Segurança na gravidez
Grandes grupos de medicina e governos em todo o mundo afirmam que o paracetamol é seguro para uso por gestantes.
O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia (a associação profissional desses profissionais nos EUA) afirmou que médicos de todo o país têm consistentemente identificado o paracetamol como um dos únicos analgésicos seguros para gestantes.
“Estudos realizados no passado não mostram evidências claras que comprovem uma relação direta entre o uso prudente de paracetamol durante qualquer trimestre e problemas de desenvolvimento de fetos”, afirmou o grupo.
No Reino Unido, as diretrizes do Serviço Nacional de Saúde afirmam que o paracetamol é a “primeira escolha” de analgésico para tratar gestantes. “É comumente tomado durante a gravidez e não faz mal ao bebê”, afirmam as diretrizes britânicas.
A fabricante do Tylenol, Kenvue, defendeu o uso do medicamento em gestantes, afirmando que é a opção analgésica mais segura para o grupo.
Em comunicado à BBC, a empresa afirmou: “Acreditamos que dados científicos independentes e sólidos demonstram claramente que tomar paracetamol não causa autismo. Discordamos veementemente de qualquer sugestão em contrário e estamos profundamente preocupados com o risco à saúde que isso representa para as gestantes.”
Tanto a empresa quanto os médicos americanos aconselham as gestantes a consultar profissionais de saúde antes de tomar qualquer medicamento sem receita.
A mídia americana relata que o governo Trump aconselhará mulheres grávidas a tomarem o analgésico apenas em caso de febre alta.
Febres altas não tratadas podem causar danos tanto às mães quanto aos bebês em desenvolvimento.
Paracetamol pode causar autismo?
Em abril, o secretário do Departamento de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., prometeu “um esforço massivo de testes e pesquisas” para determinar a causa do autismo em cinco meses.
A visão amplamente difundida entre os pesquisadores é que não existe uma causa única para o autismo, que se acredita ser resultado de uma combinação complexa de fatores genéticos e ambientais.
Em agosto, uma revisão de pesquisa liderada pelo reitor da Chan School of Public Health da Universidade de Harvard descobriu que crianças podem ter maior probabilidade de desenvolver autismo e outros distúrbios do neurodesenvolvimento quando expostas ao paracetamol durante a gravidez.
Os pesquisadores argumentaram que algumas medidas deveriam ser tomadas para limitar o uso do medicamento, mas disseram que o analgésico ainda é importante para tratar a febre e a dor em mulheres.
Mas outro estudo, publicado em 2024, não encontrou relação entre a exposição ao paracetamol e o autismo.
“Não há evidências robustas ou estudos convincentes que sugiram que haja qualquer relação causal”, disse Monique Botha, professora de psicologia social e de desenvolvimento na Universidade de Durham.
Os diagnósticos de autismo aumentaram fortemente desde 2000. Em 2020, a taxa entre crianças de 8 anos atingiu 2,77%, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.
Cientistas atribuem pelo menos parte do aumento à maior conscientização sobre o autismo e à expansão da definição do transtorno. Pesquisadores também têm investigado fatores ambientais.
No passado, Kennedy Jr. difundiu falsas teorias sobre o aumento das taxas de autismo, culpando as vacinas, apesar da falta de evidências.
Como funciona o paracetamol
Os medicamentos que aliviam a dor (conhecidos como analgésicos) podem ser opioides ou não opioides.
Os opioides, derivados da papoula ou produzidos em laboratório, ligam-se aos receptores opioides no cérebro e levam à liberação de dopamina, um hormônio associado à sensação de prazer.
Mas esses medicamentos podem ser altamente viciantes, e é por isso que os especialistas dizem que é melhor começar a tratar a dor com medicamentos não opioides, como o paracetamol.
Curiosamente, ainda não há consenso sobre como exatamente o paracetamol funciona.
“O mecanismo de ação do paracetamol ainda não foi completamente esclarecido”, diz o médico Philip Conaghan, professor de Medicina Musculoesquelética da Universidade de Leeds, no Reino Unido.
“É provável que ele tenha algum efeito na forma como nosso corpo ‘entende’ a dor no sistema nervoso central e no cérebro, além de provavelmente agir em regiões periféricas onde há inflamação.”
Acredita-se que o paracetamol interfira em ações de enzimas conhecidas como ciclooxigenase, ou COX na sigla em inglês, relacionadas à sensação dolorosa e ao aumento da temperatura corporal. Alguns estudos também observaram uma ação da droga em neurotransmissores e vias cerebrais, o que traria um efeito analgésico.
Acredita-se que o paracetamol também atue de outras maneiras. Por exemplo, ele é metabolizado no composto AM404, que supostamente desempenha um papel em diversas vias de ação da dor.
Com qual frequência deve se tomar paracetamol?
Especialistas em saúde destacam a importância de seguir as diretrizes de dosagem do paracetamol para um uso seguro.
Eles argumentam que o medicamento raramente causa efeitos colaterais se tomado na dosagem correta e por um curto período.
A dose recomendada, de acordo com o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, é de um ou dois comprimidos de 500 mg, até quatro vezes em 24 horas, com um máximo de oito comprimidos em 24 horas.
Exceder esse limite pode levar a danos ou insuficiência hepática graves, já que aproximadamente 5% do paracetamol é metabolizado em uma substância tóxica, a benzoquinona imina, conhecida como NAPQI.
Dados da agência de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) dos EUA mostram que overdoses de paracetamol foram a principal causa de insuficiência hepática aguda nos EUA entre 1998 e 2003.
Em quase metade desses casos, a overdose foi acidental, pois a vítima excedeu involuntariamente o limite diário recomendado.
Isso acontece com frequência, pois o paracetamol está presente em 600 medicamentos, de acordo com a FDA.
Uma pessoa com gripe, por exemplo, pode receber vários tratamentos sem perceber que cada um contém paracetamol.
Os especialistas também aconselham os pais a ficarem atentos à dosagem dos seus filhos, especialmente quando eles se deslocam entre vários responsáveis ao longo do dia, como a creche, os avós e a casa.
Eficácia
A Organização Mundial da Saúde recomenda o paracetamol como tratamento de primeira linha para dor e febre leve a moderada.
Se não funcionar, os pacientes podem passar para opioides fracos, depois opioides mais fortes e, eventualmente, para tratamentos especializados, se necessário.
A eficácia do paracetamol varia dependendo do tipo de dor.
O Instituto Cochrane, sediado no Reino Unido, que revisa e analisa estudos publicados, afirma que ele é eficaz no tratamento de enxaquecas agudas, bem como de dores após o parto e cirurgias.
No entanto, seus benefícios para condições como artrite nos joelhos são considerados “modestos”.