Nuzman, o estremecido reinado do ‘pai da Olimpíada’
Acumulando mais de duas décadas no poder, dirigente do esporte olímpico se equipara a cartolas da Copa em escândalo de corrupção que desmascara a Rio 2016
Em reuniões com dirigentes e aliados, Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) desde 1995, não raro se autoproclamava como “pai da Olimpíada”. De fato, seu esforço para levar os Jogos de 2016 ao Rio de Janeiro era patente. Tanto que frequentemente se referia ao feito em primeira pessoa: “Eu trouxe os Jogos para o Brasil”. Agora, a Polícia Federal e o Ministério Público apresentam outra versão para justificar o empenho de Nuzman pela candidatura do Rio além do retórico discurso patriótico. As autoridades brasileiras asseguram que o mandachuva do COB seria o elo entre políticos e dirigentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) em um esquema de compra de votos que, irrigado com dinheiro público, garantiu ao país o direito de sediar a última Olimpíada.
Batizada de Unfair Play (Jogo Sujo), a operação é um desdobramento da Lava Jato e foi motivada por um pedido do Ministério Público francês, no fim do ano passado, após encontrar indícios de corrupção na candidatura do Rio em investigação sobre doping no atletismo. Nesta terça-feira, foram expedidos pedidos de prisão contra Arthur César de Menezes Soares, conhecido como Rei Arthur, apontado como o operador financeiro do esquema, e sua ex-sócia Eliane Pereira Cavalcante. Policiais também cumpriram mandados de busca e apreensão na casa de Nuzman e na sede do COB. O presidente da entidade se apresentou à Polícia Federal durante a manhã para prestar depoimento.
De acordo com as investigações, Nuzman é “figura central” do esquema que destinou, por meio de empresas de Soares, propina de 2 milhões de dólares para comprar o voto do senegalês Lamine Diack, ex-presidente da Federação Internacional de Atletismo (IAAF). O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que está preso desde novembro, por sua vez, teria recebido 10 milhões de dólares. Em troca, o governo do Estado repassava contratos públicos bilionários para as empresas de Soares. “Trata-se de uma organização criminosa extremamente complexa, que planejou cuidadosamente cada passo para que os Jogos Olímpicos viessem para o Brasil”, afirma a procuradora do Ministério Público Federal, Fabiana Schneider.
Diack, além de ter votado a favor do Rio no processo de escolha da sede de 2016, ainda teria influenciado outros dirigentes do continente africano a fazerem o mesmo. A propina, dividida em dois pagamentos, caiu em contas bancárias do seu filho três dias antes da eleição capitaneada por membros do COI, em 2 de outubro de 2009, na Dinamarca. Nuzman ainda é suspeito de comprar votos de países africanos na Nigéria ao lado de Ruy Cezar Miranda, ex-assessor do então prefeito do Rio, Eduardo Paes. “Tecnicamente, o Rio de Janeiro tinha a pior candidatura entre todos os concorrentes e, mesmo assim, saiu vencedor”, diz Schneider. Às vésperas da escolha da sede olímpica de 2016, José María Odriozola, vice-presidente do Comitê Olímpico Espanhol, chegou a afirmar que “o Rio é a pior candidatura” – fato que levou as autoridades de Madri, que acabou desbancada na rodada final de votações, a pedirem desculpas à cidade brasileira. O Rio venceu o pleito por 66 votos a 32 da capital espanhola. Sempre que questionado sobre a legitimidade da escolha, Carlos Arthur Nuzman era enfático: “Tivemos mais que o dobro dos votos de Madri. Foi uma vitória incontestável do Rio de Janeiro e do povo brasileiro”.
O Rio conquistou o direito de sediar a Olimpíada em sua terceira tentativa depois de perder para Atenas (2004) e Londres (2012). Além de Madri, superou as candidaturas de Chicago e Tóquio, que vai sediar os Jogos em 2020 e também é investigada pela força-tarefa internacional por compra de votos. Para tanto, Nuzman conseguiu angariar o apoio maciço de diversos políticos e personalidades, como Sérgio Cabral, Eduardo Paes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-ministro dos Esportes, Orlando Silva, e até mesmo de Pelé. Todos eles estavam ao seu redor, carregando uma bandeira do Brasil, no momento em que o presidente do COI, Thomas Bach, anunciou a Cidade Maravilhosa como vencedora da eleição.
Tal qual o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Marco Polo Del Nero, que não viaja para o exterior por receio de ser preso, Nuzman também está impedido de deixar o país, por ordem da Justiça, que também bloqueou até 1 bilhão de reais em bens do dirigente, Arthur Soares e Eliane Cavalcanti. O valor é baseado em indenização que a Justiça brasileira pretende cobrar dos envolvidos pelos danos causados à imagem do país. Ex-atleta olímpico de vôlei, que, antes de assumir o COB, ainda presidiu a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), Nuzman engrossa a fileira de dirigentes brasileiros investigados por fraudes, subornos e irregularidades de gestão, assim como os que arquitetaram a Copa do Mundo de 2014. Tanto Del Nero quanto os dois últimos presidentes da CBF, Ricardo Teixeira, e José Maria Marin, que está em prisão domiciliar em Nova Iorque, foram indiciados no esquema de corrupção da FIFA.
Por causa da saúde debilitada – já havia sido internado por problemas no coração em 2004 e chamou a atenção no encerramento da Olimpíada ao ler seu discurso com as mãos trêmulas, no ano passado –, familiares de Nuzman há tempos tentam convencê-lo a se aposentar. O dirigente jamais deu ouvidos. Aos 75 anos, ele conseguiu barrar a oposição na Justiça e se reeleger como candidato único à presidência do COB até 2020. Mas seu longo reinado à frente do esporte olímpico brasileiro já dava sinais de desgaste bem antes do terremoto desta terça-feira. Se em 2012 só teve um voto contrário na eleição do COB, viu o número de apoiadores cair para 24 dos 34 votos possíveis no pleito do ano passado. Em abril, apesar de ser apontado como favorito, perdeu a eleição para comandar a Organização Desportiva Pan-Americana (Odepa).
Para elaborar a denúncia do esquema de compra de votos, o Ministério Público francês contou com a colaboração de um antigo opositor de Nuzman. Ex-presidente da Confederação Brasileira de Desportos no Gelo, Eric Walther Maleson foi o responsável por denunciar às autoridades a suposta comitiva que distribuiu propinas a dirigentes africanos. Embora qualifique os Jogos do Rio como “um estrondoso sucesso”, a Olimpíada serviu para ampliar a crescente impopularidade de Nuzman. Como chefe do Comitê Rio 2016, ele lida com um rombo de aproximadamente 100 milhões de reais. Empresas e fornecedores que trabalharam para a realização dos Jogos cobram dívidas na Justiça. Nuzman tenta convencer – ainda sem sucesso – os governos federal, estadual e municipal a bancar o déficit.
A defesa do presidente do COB afirma que “ele não cometeu nenhuma irregularidade”. “Criou-se um espetáculo midiático. Ele [Nuzman] não fez nada de errado, não há nenhum indício que comprove a acusação. Ele está com a consciência tranquila”, disse o advogado Sergio Mazzillo. A Justiça brasileira informou que a próxima etapa de investigações, com análise dos materiais colhidos nos mandados de busca e apreensão e dos depoimentos dos envolvidos, deve durar cerca de dois meses. A princípio, Nuzman responderá ao processo em liberdade. Além do Comitê Rio 2016, ele integra, desde abril, a Comissão de Coordenação da Olimpíada de Tóquio 2020, alvo de investigações da operação Unfair Play.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/05/deportes/1504632748_454470.html