ATROARIS; A TRIBO INDÍGENA QUE QUASE DESAPARECEU NO BRASIL

AÇÃO GOVERNAMENTAL, GARIMPOS, CONSTRUÇÕES DE HIDRELÉTRICAS E A BR-174 QUASE ACABARAM COM ESSA POPULAÇÃO INDÍGENA INTEIRA

Quando se olha para dentro das florestas brasileiras e se percebe em suas feridas o sangue de disputas e interesses, geralmente os sofrimentos e a mancha vermelha que tinge a terra é de origem indígena. Possuidora das maiores riquezas do mundo, a floresta amazônica guarda entranhado em seus territórios cada vez mais escassos, um grito de dor. E, se formos além, seremos capazes de enxergar nos animais e pássaros, no vento rasgando folhas, cada uma das barbáries a que os povos nativos da mata foram obrigados a passar ao longo das últimas décadas de exploração e cobiça.

Durante os anos 60 o governo federal começou a pensar em uma rodovia que ligasse Boa Vista a Manaus, e que se estendesse até a Venezuela. A BR-174, inaugurada em sua totalidade em 1998, rasgou a floresta de uma ponta à outra e quase causou o desaparecimento por completo de uma população indígena inteira.

Quando as obras começaram, na segunda metade da década de 60, existia no meio do caminho uma das tribos mais agressivas do Brasil, os waimiri atroari. Em 1968, incomodados com os constantes ataques dos índios às tropas e aos trabalhadores civis que construíam a rodovia, o governo federal destacou um indigenista para pacificar os índios.

O especialista chamado para avançar sobre o território atroari, pacificá-los e demovê-los dos constantes ataques aos trabalhadores, foi o padre italiano Giovanni Calleri, apontando como um dos maiores conhecedores das populações indígenas do Brasil à época. Acompanhado de oito homens e duas mulheres. o padre – com certa dose de prepotência e arrogância – achava que seria capaz de convencer os atroari a mudarem as suas aldeias para longe da futura estrada.

No dia 31 de outubro de 1968, o rádio transmissor levado pelo padre à selva silenciou, despertando a atenção da Prelazia de Roraima, a quem o italiano estava ligado. Arriscando, Calleri, que tinha feito um primeiro contato com êxito com os atroaris, tinha resolvido seguir adiante pela mata e sua expedição foi inteiramente dizimada. Calleri e seus companheiros foram atocaiados e abatidos com golpes de bordunas e flechas. Esse episódio e os desdobramentos estão descritos no belíssimo livro Tocaia do Norte, da escritora e pesquisadora Sandra Godinho.

Com o fim da expedição do italiano, o governo militar interpôs soluções mais drásticas à questão dos atroaris. Se não dava para ser pela paz, que fosse pela guerra, assim pensaram. Foram intensificadas as ações de confronto na mata entre militares e índios, aceitando-se o emprego de força para afastá-los das margens da estrada.

Na segunda metade de 1974, com as obras da rodovia já avançando em trechos, os militares promoveriam um dos massacres mais covardes da história do Brasil. Quando diversas aldeias atroaris estavam reunidas nas margens do Rio Alalaú, um ronco de avião ou helicóptero começou a tomar conta dos céus da região. Como era algo incomum para os índios, o barulho fez com que todos saíssem das ocas e se concentrassem no meio da tribo para olhar o estranho objeto que dava voltas sobre eles e que de repente passou a despejar um pó sobre os indígenas. Todos, menos um, foram atingidos. Quando os atroaris que faltavam chegar à festa apareceram, encontraram 33 mortos pelo tal pó entre os seus iguais. Tantos outros estavam degolados. O sobrevivente do massacre contou aos demais índios que os atingidos pelo pó passaram a gritar que estavam sendo queimados e que sentiam tonturas; caíram e rolaram um pouco no chão até desfalecerem.

O mais impressionante, ainda segundo o único sobrevivente do ataque, que além de escapar do pó ainda foi hábil para se esconder em um trecho de mata fechada, é que, enquanto os índios agonizavam, a aldeia foi invadida por homens armados com facões que degolaram os que ainda estavam vivos. O pó usado, segundo o Conselho Indigenista, foi napalm, uma contribuição americana ao exército brasileiro que também o usaria contra populações civis na região da Guerrilha do Araguaia. O relato do jovem índio correu até chegar ao Conselho Indigenista Missionário e posteriormente ao Ministério Público Federal.

indígena
Habitação atroari, indígenas foram vítimas de ações governamentais nas últimas décadas

Para executar o Plano de Integração Nacional do Governo Federal, que previa a ocupação de 2 milhões de km2 na Amazônia, o exército tornou comum a invasão das tribos atroaris, os bombardeios com uso de napalm, esfaqueamentos, emboscadas e outras ações que fogem, seguramente, do cunho humanitário e heroico das forças armadas.

Na década de 80 os atroaris seriam novamente castigados com um projeto governamental, a construção da hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, que inundaria suas terras restantes, reduzindo a fonte de alimentos dos índios e forçando-os a uma nova mudança. A população de atroaris que era de 3 a 5 mil indivíduos nos anos 60 decaiu para 340 em meados de 1980 segundo levantamento da Funai. Hoje, ainda segundo o mesmo órgão, a população da etnia subiu para 2 mil indivíduos, parte pela ação de preservação da cultura indígena através de projeto da Eletronorte.

Reconhecendo o massacre continuado dos atroaris como um projeto baseado em um propósito governamental claro de ocupação de terras, o Ministério Público Federal em 2018 acusou o estado brasileiro de genocídio. A ação do MPF ainda tramita, e ainda que seja pouco provável a condenação de alguém, reconhecer os massacres a que esses índios foram submetidos pode significar um grande passo para a proteção da sua cultura.

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